Hélio Oiticica

Pequeno resumo dos Bloco-Experiências in COSMOCOCA – programa in progress

MÁRION STRECKER

Cosmococa é uma palavra inventada pelo cineasta Neville Dalmeida (1941) que dá nome a um conjunto de trabalhos feitos por ele em 1973 com o artista carioca Hélio Oiticica (1937-1980). Cosmococa deriva de cocaína, droga usada não apenas como diversão e para alterar o estado da mente, mas também como pigmento e blague. Neville encontrou Hélio em Nova York, onde o artista estava morando desde 1970, quando ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim.

Bloco-Experiências COSMOCOCA – programa in progress – CC4 26 NOCAGIONS (1973), de Hélio Oiticica e Neville Dalmeida

“Eu sou INCA como FREUD (…) FREUD É COCA (quem ‘estuda’ FREUD e não é expert em COCA não estuda FREUD: freuda-se”, escreveu o artista, em um dos muitos textos provocativos preservados pelo Projeto Hélio Oiticica, que guarda grande coleção de seus escritos e trabalhos. O médico vienense Sigmund Freud (1856-1939) receitava e eventualmente também consumia cocaína diluída em água. Cocaína era na época uma droga lícita, usada para tratar hipocondria, neurastenia, histeria, melancolia e prostração nervosa. Como no longo prazo a droga se mostrou mais maléfica que benéfica, Freud acabou criando um tratamento alternativo, sem medicamento, baseado na fala. Assim surgiria a psicanálise.

Nascido em Belo Horizonte (MG), Neville faria depois filmes de grande sucesso como “A Dama do Lotação” (1978) e “Rio Babilônia” (1982), entre outros. Neville havia filmado “Mangue-Bangue” em 1971, em cinco dias e com três pessoas, em conhecida zona de prostituição em manguezal do Rio de Janeiro, à qual tinha sido levado anteriormente por Hélio. Sem poder finalizar o filme no Brasil, onde teria de submetê-lo à Censura, com a qual já tinha tido problemas, Neville levou os rolos a Londres.

O cineasta passou seis meses com os rolos debaixo da cama, antes de mandar revelar e levar uma bronca do laboratório pelas cenas de uso de drogas, nudez e sexo. Mas a montagem pode ser realizada na Inglaterra e, assim que possível, Neville levou o filme para Hélio em Nova York. Entusiasmado, Hélio apresentou “Mangue-Bangue” ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), onde foi agendada uma exibição.

“Eu jamais teria a necessidade de inventar esse tipo de experiência não fossem as longas conversas e caminhadas pela linguagem limite criada por MANGUE_BANGUE”, escreveu Hélio Oiticica em texto de 1974. O filme ficou desaparecido por mais de 30 anos, até ser localizado pelo pesquisador Frederico Coelho em 2006. Ele havia sido esquecido por Neville e Hélio na noite da projeção no museu, onde passou décadas sem ser listado nem notado. “Mangue-Bangue” foi então restaurado quadro a quadro pelo MoMA e entrou para o acervo da sua Cinemateca, onde é considerado um “ícone da contracultura do cinema mundial”.

Bloco-Experiências in COSMOCOCA – programa in progress é o nome completo dado por Hélio ao trabalho criado com Neville em Nova York. Juntos, eles fizeram cinco proposições de COSMOCOCA (abreviadas como CC). Sem Neville, Hélio faria mais quatro, num total de 9. Ele deixou por escrito instruções detalhadas de cada uma delas, mas não viu montada nenhuma publicamente. 

COSMOCOCA são ambientes multissensoriais onde as pessoas são convidadas a relaxar em almofadas, colchonetes ou redes e estar no centro da experiência. Os ambientes exibem sequências de slides projetadas simultaneamente e trilha sonora feita por colagem de músicas e outros sons. Nos slides feitos por Hélio aparecem, entre parangolés e outras imagens, capas de discos, jornal ou de livros sobre as quais se vêem desenhos que foram traçados com cocaína por Neville. Hélio deixou por escrito instruções para a realização tanto de performances públicas quanto de performances privadas dessas proposições, com algumas variações entre elas.

O pó da cocaína funciona como uma máscara ou maquiagem, num processo que Hélio chamava de “mancoquilagens”, numa junção de Manco Cápac, o imperador Inca, cujos nomes contêm a palavra coca, e “maquilagens”, no sentido de pintura de rosto. “É JOGO-JOY: nasceu de blague de cafungar na capa do disco de ZAPPA WEASELS RIPPED MY FLESH: quem quer a sobrancelha? – e a boca?: sfuuum! pó-SNOW: paródia das artes plásticas: paródia do cinema”, escreveu Hélio.

Os cinco primeiros Bloco-Experiências in COSMOCOCA – programa in progress, concebidos com Neville, são os seguintes:

CC1 TRASHISCAPES

CC2 ONOBJECT

CC3 MAILERYN

CC4 NOCAGIONS

CC5 HENDRIX – WAR

CC1 TRASHISCAPES faz no título uma espécie de fusão de trash, lixo em inglês, e landscape, paisagem. Nesse ambiente aparece uma capa do jornal “The New York Times” mostrando o rosto do cineasta espanhol Luis Buñuel, de quem sempre se recorda a cena de um olho  cortado a navalha no filme “Um cão andaluz” (1928), feito em parceria com Salvador Dalí. Também aparece a capa de um disco de Frank Zappa com a banda californiana Mothers of Invention, entre outras imagens. O público seria convidado a deitar em almofadas no chão e a lixar as unhas com lixas fornecidas na entrada. A trilha sonora traz música popular nordestina e sons da Segunda Avenida de Nova York, além de música de Jimi Hendrix.

CC2 ONOBJECT, que condensa o nome Ono com a palavra object (objeto, em inglês),  inclui capas dos livros “Grapefruit”, de Yoko Ono, “What is a thing”, de Heidegger, e “Your children”, de Charles Manson. A instrução de Hélio é induzir os participantes a um “jogo leve e alegre de corpo por meio da dança, subindo acima do solo”. A ideia é que esse ambiente não se pareça com o modo aceito da performance nem se pareça com uma anti-performance, cujo alvo a ser destruído está explícito em sua definição. Deveria ser “algo novo como Yoko ela mesma é”, escreveu o artista. 

CC3 MAILERYN traz a biografia ilustrada da atriz Marilyn Monroe com ensaio escrito por Norman Mailer, publicada naquele ano, com a surpreendente teoria de que a atriz teria sido assassinada por agentes da CIA e do FBI por seu suposto caso amoroso com Robert F. Kennedy. A performance pública inclui projeções sobre as quatro paredes e no teto, o chão é de areia, coberto de vinil transparente, criando dunas. Os participantes recebem balões para soprar e apitos.

CC4 NOCAGIONS traz uma fusão do nome do vanguardista americano John Cage, pioneiro da música aleatória, e do seu livro “Notations” (Notações, em inglês). Nesse ambiente o público seria convidado a entrar numa piscina, além de ouvir uma peça de Cage, escrita tendo como base um conjunto de slides que lhe seria apresentado. Esse bloco-experiência foi dedicado aos poetas concretos brasileiros Augusto e Haroldo de Campos.

Em CC5 HENDRIX-WAR, o público é convidado a se deitar em redes, com trilha sonora de Jimi Hendrix. A capa do álbum “War Heroes”, do guitarrista americano, aparece em sequência de slides desenhada com cocaína.

A CC6 COKE HEAD’S SOUP foi criada em parceria com Thomas Valentin e seu título faz referência ao álbum da banda inglesa The Rolling Stones intitulado “Goat´s Head Soup” (que significa Sopa de Cabeça de Cabra). A trilha original foi gravada por Hélio, Thomas e Andreas Valentin e Silviano Santiago. Foi criado um logotipo para Cosmococa usando a mesma letra do logotipo da Coca-Cola.

Imagem de um cheque para Hélio Oiticica, com data de 28 de outubro de 1974 e assinado por Andreas Valetin, com logotipo Cosmo-Coca imitando o logotipo da Coca-Cola

A CC7 SHOOT THE NAIL FILE, proposição de HO para o crítico e curador britânico Guy Brett, traria como elemento lixa de unha (nail file), uma cobra e conversas do artista com o crítico sobre Dreamtime (tempo do sonho), um ritual de certas tribos aborígenes a partir de pesquisas do historiador Mircea Eliade.

CC8 MR. D ou D DE DADO, com Silviano Santiago, usa como trilha a música “Dancing with Mr. D”, de Mick Jagger e Keith Richards, com imagens feitas com um espelho no chão do banheiro do apartamento de Hélio em Nova York, no qual se via o teto. A pessoa fotografada era Carlos Pessoa Cavalcanti, irmão de Romero, um dos garotos que aparecem em pose sensual na série Neyrótika, uma obra de 80 slides, sem narração, com áudio misturando poesia de Rimbaud, poluição sonora e rádio AM.

CC9 COCAOCULTA RENÔ GONE é uma proposição feita para o artista Carlos Vergara e seria enviada em 13 de março de 1974, comemorando 1 ano de COSMOCOCA – programa in progress. Não haveria cocaína, por isso o nome COCAOCULTA. As imagens deveriam ser feitas no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, na casa de Zezé, mãe de Renaud, amigo do Mangue assassinado depois de oito anos de prisão, supostamente injusta, segundo Hélio. RENÔ GONE literalmente quer dizer Renaud foi. Esse proposição foi realizada pela primeira vez no MAM Rio, em 2014.

O artista Carlos Vergara, para quem Hélio Oiticica enviou a proposição CC9 COCAOCULTA RENÔ GONE em 1974, na realização da obra 30 anos depois no MAM Rio, como parte da exposição “Imagens da Escuridão e da Resistência”, curada por Luiz Camillo Osorio. Foto Paulo Jabur

CC9 COCAOCULTA RENÔ GONE, proposição de Hélio Oiticica enviada para o artista Carlos Vergara em 1974, realizada no MAM Rio em 2014; à esquerda, retrato de Renaud feito por Hélio Oiticica. Foto Paulo Jabur

Grades, cobertores e outros elementos da prisão, além de projeções, na CC9 RENÔ GONE, proposição de Hélio Oiticica para Carlos Vergara de 1974, exposta no MAM Rio em 2014. Foto Paulo Jabur

Os Bloco-Experiências se encaixam também dentro de um outro conceito criado por Hélio Oiticica, o de Quasi-Cinema: o espectador não terá de ficar nunca em “cadeira-prisão”, o audiovisual não terá “ranço professoral” e deixará de lado a “uniliteralidade do cinema-espetáculo”, nas palavras de Hélio. “A imagem não é o supremo condutor ou fim unificante da obra (…) : o deslocamento da supremacia e da constância da imagem é o cerne disso tudo: o q não significa q o visual deixe de contar (…)”, escreveu em sua maneira peculiar de se expressar.

“Hélio era um wired man [homem conectado]. Tudo funcionava ao mesmo tempo. Sentado à moda ioga ou deitado, passava os dias nos Ninhos. Televisão, câmera fotográfica, projetor de slides, rádio-gravador, fitas cassete, telefone. Eterno tilintar. Um contínuo desfilar de pessoas”, na descrição do escritor, crítico e professor Silviano Santiago, num artigo publicado pela revista Ars n. 30, da USP. Babylonests (misto de Babilônia com ninhos, bebê e sozinho) era o nome dos pequenos ambientes de muitos encontros e experiências, com acortinados de filó, que construiu dentro do seu apartamento sem paredes em Nova York. Esses ambientes eram uma reconstrução doméstica de outros Ninhos feitos para a exposição Information, no MoMA, em 1970.

Há muito Hélio tinha deixado para trás o interesse em fazer obras de arte como objetos de contemplação, por mais revolucionárias que fossem. Não abandonou o rigor teórico, mas a interação com outros artistas, a invenção radical e a participação ativa do público passaram a prevalecer em sua obra e estão refletidos em seus muitos escritos.

O artista morreu prematuramente aos 42 anos, no Rio de Janeiro, de um acidente vascular cerebral.  Embora ele não tenha chegado a instalar publicamente nenhuma COSMOCOCA, várias delas vieram a ser montadas depois, no Brasil e no exterior, a partir das instruções deixadas por escrito e com a ajuda de seus co-autores. Montagens das cinco primeiras compõem a Galeria Cosmococa no Instituto Inhotim, na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.

MÁRION STRECKER é editora de conteúdos artísticos do MAM Rio.


Links relacionados

Sobre a exposição Hélio Oiticica: a dança na minha experiência
Sobre a exposição COSMOCOCA – programa in progress: núcleo poético dos Quasi-Cinema

Uma biografia de Hélio Oiticica
Projeto Hélio Oiticica
Revista Ars n. 30, da Universidade de São Paulo, dedicada a Hélio Oiticica

Hélio Oiticica em Nova York (1970-1978) Experiência em campo ampliado, dissertação de Marcos Bonisson para Mestrado em Estudos Contemporâneos de Arte na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Trailer do filme “Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos” (2017), de Mario Abbade :



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