Constelação dos sonhos

Depoimento sobre Luiz Rosemberg Filho

“Para vocês, o cinema é um espetáculo. Para mim, é quase uma concepção do mundo.” (O jardim das espumas)

“O cinema do futuro será um cinema coletivo, de análise coletiva.” (O jardim das espumas)

JOEL YAMAJI

Luiz Rosemberg Filho nos faz falta: no cinema brasileiro, em nossa formação cultural, para o momento que atravessamos. Nesses tempos de falso pragmatismo em que realizar filmes reduziu-se ao cumprimento de procedimentos dentro de moldes direcionados por um poder institucionalizado, quer econômico, acadêmico ou político, em que os jovens que entram para o cinema de hoje passam a ser cooptados como mão-de-obra corrompida por parâmetros de mercado e valores inerentes (a aparência exterior, a eficiência como produtividade, o luxo, a vaidade, a exploração e a espetacularização da miséria humana com fins ao lucro) faz-nos falta seus ensinamentos sobre os sentidos reais do cinema, do cinema como linguagem do homem.

Os cineastas Luiz Rosemberg Filho e Joel Yamaji. Foto Arquivo pessoal de Joel Yamaji

Para ele, o cinema era um instrumento de reflexão e de conhecimento de nossos tempos, de projeções mágicas de nossos sonhos em confronto com a sedução de um falso imaginário criado pela indústria cultural, uma forma de vivermos e de nos expressarmos livremente, dentro do livre-arbítrio de cada um de nós. Filmes são produtos, o cinema é a vida, é a linguagem da vida. Cada um de nós trazemos um cinema dentro de nós, com códigos, memória, ritmo e tempo próprios, singulares e particulares. Cada um de nós é um cinema. Rosemberg (Rô para os amigos) não distinguia o ato de fazer um filme do de viver. Viveu o cinema como ato de criação constante e perene, viveu-o na linguagem de sua vida. Entre 1969 e 2019, deixou-nos o legado de 9 filmes de longa metragem e cerca de 60 em curta e média metragem. Além dos inúmeros roteiros, escritos sobre cinema e colagens.

No cinema, sabemos que há realizadores que se limitam ao registro e à reprodução do real, e há os que se dedicam à construção de um imaginário próprio, uma maneira de ver o mundo, particular e única. Esse particular não é de natureza egoística, individual. Reagindo ao mundo que o ofende, não o faz através de um raciocínio lógico, mas por impulso (natural), processando-se por constelações de imagens e sons que se deflagram e se associam em constelações maiores, mais amplas, cristalizando um cosmos que é espelhar e especular ao mundo prosaico e verista que habitamos e no qual o autor, o poeta, almeja ultrapassar para tocar o infinito. (“A função da arte, e da arte no cinema, é tangenciar o infinito, para além da vulgaridade, das travessias áridas e medíocres do cotidiano que nos é imposto”)

As personagens dos filmes de Rô e de seus muitos monólogos não são encontráveis no verismo prosaico do dia-a-dia. São maiores do que a própria vida, remetem a uma generalidade da espécie humana, personificam ideias mas sem serem símbolos de um conceito por trás. São abstratas e aludem a algo que nos é familiar, que identificamos mas não poderíamos precisar, não são alegóricas: fundem a exuberância de seus corpos nessa abstração generalizante sintetizando o concreto e o abstrato na precisão de uma imagem poética.

Suas personagens são como Rô via, lia e sentia o mundo, dotadas da aura que o sistema ainda não conseguira reificar, transfigurar em mercadoria. Olhar de poeta. No seu cinema, o sentido se faz pelo conjunto, pela impressão totalizante e global dos quadros que são, por sua vez, intraduzíveis em palavras; onde as palavras passam a ser imagens, e as imagens, palavras, fluxo do pensamento em vórtice, um Aleph onde o mundo todo gira e se contém em sua simultaneidade. São filmes reflexivos e de visão totalizante, remetem ao que é genérico no ser humano, a um estado de sonho e transe coletivo.

Faz-se cinema não necessariamente por profissão, faz-se cinema por necessidade interna de se expressar, de se falar, de se comunicar ao outro. No cinema em que Rô acreditava e defendia, para se fazer um filme é preciso, antes de tudo, ter-se uma visão de mundo, dar vazão à sua própria linguagem e modo de se expressar, descobrir em si mesmo essa linguagem, o jeito próprio de ser, original, radicular, único, e não de imitação do outro. Um cinema autoral, de poesia. E, no entanto, o mais comum no homem é a natural tendência a macaquear o outro.   

Faz falta sua voz calorosa, o olhar afetuoso e os risos que provocava com suas piadas e senso de humor quando se deparava com as adversidades e os humanos. Era um homem sério, um mestre natural e um amigo em quem sabíamos poder confiar. Tinha paixão por Godard, Orson Welles (“pela exuberância e alegria de viver”), Kubrick, Glauber, Andrea Tonacci, Joaquim Pedro, Mário Carneiro (pela amizade), Losey, Wajda, Bergman, Rossellini, Antonioni (durante anos, tentou editar no Brasil os escritos sobre cinema desses dois últimos autores). Era também um homem de escrita e dizia que, para os jovens de hoje, no cinema, seria preciso que aprendessem a ler e a escrever para depois se atreverem a cometer um filme: que nos faltava uma formação enquanto indivíduos, enquanto país.

Muitos de nós, que tivemos o privilégio de sua amizade, certamente temos em nossas casas toda uma área preenchida por livros e filmes com que gostava de nos presentear. Fora seus muitos escritos, as cartas (infinitas) e, no meu caso particular, as muitas camisas de cores quentes e fortes com que queria reanimar as vestimentas do então ainda jovem amigo: “Um cineasta tem que se vestir com cores vivas, alegres!” Que éramos privilegiados por convivermos com a espécie humana, por mais dissabores que ela nos pudesse trazer. Que não se abdicasse do afeto pelos amigos e pelos sonhos compartilhados: um mundo mais justo, fraterno, menos sofrível, que fizesse justiça à beleza e à grandeza do humano. “A inveja é uma merda”, costumava dizer. Como ambicionar viver a vida do outro e abdicar daquela que nos cabe viver?  A usura, a mesquinhez, o pensar pequeno, esses seriam talvez os males maiores do Brasil e também – por que esconder? – de nossa classe. Com ele, descobri o senso do humor, a insistência em manter a integridade dos sonhos, a necessidade de sermos generosos com o outro em um mundo cuja precariedade nos faz esquecer desse que talvez seja um dos mais valiosos dons do humano: a empatia.

Rô sonhava, para as mulheres, que fossem as mais belas e sábias como ele achava que eram. Citava sempre Godard: “Somente um homem pode ter a ideia de pegar um fuzil e atirar em seu próximo. A uma mulher, jamais passaria uma ideia dessas”. Para os homens, que fossem os mais nobres e generosos; para os gays (hoje, talvez, estendesse a todos os LGBTQI+), que fossem os mais perspicazes, combativos em um mundo mumificado pelo patriarcalismo e machismo, com a abertura e compreensão para as diferenças. Para todos, que fossem amorosos do tamanho de seu coração, e combativos à altura de sua indignação diante do quão miseráveis podemos ser. “Nós estamos aqui para comer bem, beber bem, amar e sonhar. Essa é a nossa missão nessa vida aqui na Terra.” – costumava dizer em sua sincera exposição de si mesmo. Ao nos ver sorrir, traindo a leve desconfiança por sua fala talvez ingênua, olhava fundo nos olhos, a expressão extremamente séria: “É a coisa mais séria e mais verdadeira o que estou lhe dizendo!”  Dias inusitados aqueles (anos 1980?) em que se ouvia mestres do cinema, como Andrey Tarkovski, professarem verdades tão simples e elementares: “O objetivo do homem é alcançar a felicidade.”

Ocorre que, aprendemos com Dostoievski, somos capazes de nos conformarmos às condições mais abjetas que nos impõem. Cedo, tornam-se um hábito, vícios corruptores que aceitamos como naturais. O vício da perfídia, da covardia, da ambição, da indiferença para com o outro, da crueldade, da violência. O vício da humilhação imposta, da dominação, da omissão, do roubo oficial e publicamente declarado por aqueles que deveriam zelar pelos seus, o vício da servidão. E é nesse mundo corrompido que Rô, em sua natureza de poeta, viveu e lutou, construindo, professando e impondo, através de seu cinema, de suas colagens e de seu verbo, como ilha dentro de um oceano em chamas, um imaginário próprio, singular, único, que tomou como sentido libertário para sua vida e deixou como legado para seus amigos e para o mundo. Uma constelação de muitos sonhos, uma constelação de utopias.

“O verme, não importa quem seja, e sim o que ele representa.” E: “Eu vou sem a palavra, com a imagem e o som, na direção da luta. Estão todos comprometidos com o que eu quero estourar”, anunciava em 1970, em seu filme preliminar “O jardim das espumas”.  “Uma imagem fabricada é igual a centenas de pessoas que vivem enganadas pela realidade dessas imagens. Vocês vivem 24 horas a realidade das imagens falsas do supermercado. O mundo está comprando o nosso silêncio”, prosseguia em 1976, em “A$$untina das Amérikas”. Para fechar com “O bobo da corte”, 2019, seu derradeiro filme, em tom docemente triste: “A guerra é um baita empreendimento.  Para os governantes é um ato de fé, mas para o povo é um horror.” E: “É curioso o poder, só é executado por pessoas medíocres.

Como bom carioca, amante de sua cidade natal, cultivava o gosto pela brincadeira e elasticidade em misturar o real e o sonho. E nunca deixou de sonhar o projeto de se fazer um filme em episódios com os amigos, especialmente nos últimos anos de vida entre nós. São amigos que atravessam várias gerações, dos anos 1960 aos de hoje, nas mais diversas áreas, no cinema, na literatura, nas artes plásticas, na poesia, na música, nos atores (que adorava), amigos a quem ele legou seus muitos ensinamentos sobre a arte e sobre a vida, com os quais sonhou seu cinema de uma reflexão e um sentimento coletivo, que trouxesse o conforto da amizade perene, leal e fraterna. Uma amizade sólida (de cinema).    


JOEL YAMAJI é professor de roteiro, direção e história do cinema desde 1987. Mestre em Ciências das Comunicações pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, atua como técnico de apoio ao ensino e à pesquisa em cinema. Dirigiu 16 filmes de curta e média metragem, entre eles “Impressões para Clara” (1998), “Flores para os mortos” (2000), “A Ira” (2002) e “Cartas de Ourinhos” (2012-2014). Neste momento, finaliza “Os corvos”, inspirado no universo de Edgar Allan Poe. 




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